quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Für Clara

A propósito do que se vê/deve ver num espectáculo.
É verdade que nunca se adivinha o Real que pode emergir da actividade fantasiosa... mas seria tristemente naive deixar-me contentar com esta triste imprecação. Se no "Teatro" do Projecto Teatral era inconcebível a não colocação de um vidro nesse espaço recuperado por mão humana, na vida artística é também inconcebível a não colocação ou a não consciência do vidro dos olhos.
Isto não é metáfora, é mesmo assim. Já dizia a minha avó: Veja o que se veste, não veja o que se come. Eu digo: Veja o que se fala, não veja o que se viu.
Falar é fugir dos sons rudimentares, pensar a natureza.
Não é possível "regressar às origens manos" (como Larcão clama no Avarento) porque nunca existiram.
O princípio foi a segunda morte.
O homem distinguiu-se dos animais unica-e-somente pela qualidade da sua consciência que tende a investir sentidos nas coisas (coisas, maioritariamente, desprovidas de sentido; embora nos tempos actuais o nosso acordar esteja rodeado de sentidos). A minha luta acérrima pela defesa dos animais é também uma luta pela conservação da ética e da consciência dos individuos. Os homens e mulheres que ainda não perceberam que as coisas têm o sentido que lhes for investido, são fracos flácidos e abjectos. Atentemos numa grande frase de Hitler: Agora o povo não mais terá vergonha de ser iletrado. O estado cerebral actual é perpetuador deste slogan (bem, desde Aristóteles e o seu poder de mimesis).
Já mencionei os perigos do crescimento de natalidade num post anterior, já algures no you will be what you make it dei o meu parecer sobre a urgência de um tribunal das artes, de uma polícia das artes, de um hospital das artes etc e tal (ideia desdenhada e catalogada de irreverente). Mas volto a frisar o que quero dizer:
A consciência e a ética (não estou a falar de moral) são investimentos , não são uma categoria a priori do ser humano; são "adquiridos". Assim, consoante for maior o/s investimento/s de sentido/s, maior será o seu retorno em consciência e em disposição ética. Como tal, as conciências são diferentes de individuo para individuo, uns possuindo mais e outros possuindo menos. Uns merecendo-se viver mais do que outros.
Existir significa não descansar (e é bastante provável que signifique também não executar os nossos desejos intímos, mas enfim, isto fica para outro dia) e trabalhar para o Epitáfio: Aqui jaz _____, um belo ser humano que nunca soube para que viveu (plagiando Anselmo no Avarento). E aqui voltamos ao princípio deste texto:
Tal como não se sabe para que se vive, também não se sabe que Real emergirá da fantasia; mas tal como se sabe o que se vai fazendo ou não, também se sabe que fantasia ou partage du sensible vamos tentando executar na ordem simbólica. Como? De que forma?
Através dos outros.
O homo faber, o artista, constroi-se no processo de espelhamento (o mesmo processo da já citada segunda morte, ou da troca, ou do mito, ou do ou do etc e tal), um efeito co-criado com outros. Já dizia a minha avó: Junta-te aos bons, serás como eles; junta-te aos maus, serás pior que eles. E eu digo: Junta-te a mim, e mudamos eles (fala-se muito assim no café do meu prédio).
Para ser mais simples: se alguém que eu admiro como criador me corresponde em galhardetes, isto pode significar que afinal estou consciente do caminho que estou a tomar; é certo que a imagem do objecto não será totalmente nítida, mas o percurso será totalmente claro.
O REGRESSO A UMA ARTE NAIVE NUNCA EXISTIRÁ PORQUE NUNCA EXISTIU; UM ARTISTA QUE NÃO FAÇA INVESTIMENTO DE SENTIDO NO SEU TRABALHO TAMBÉM NÃO MERECE QUE ALGUÉM O FAÇA POR ELE.
UM ARTISTA QUE HABITE NEGATIVAMENTE OS DOIS REINOS ANTERIORES i.e. País: Naiveté Nacionalidade: Mole Género: Inconsciente DEVE SER JULGADO E PENALIZADO POR TER SIDO FETICHIZADO E POR TER PERPETUADO A MEDIOCRIDADE.
A mimesis (e não estou a falar necessariamente da forma) como arma artística e a não cerebralização da arte tem implicito o relaxamento da sociedade, isto o Zizek ainda não percebeu. Perdoai-o, pois não sabe o que faz; nem ele nem a maioria dos teóricos.
Um homo teoricus vs. um homo aestheticus.
Um ser teórico que não consiga transformar as suas ideias em estética, é como um actor porno impotente (parafraseando a Claudia no 5*****): sabe fazer, mas não consegue; logo, não sabe fazer.
Voltando atrás: Um ser teórico que não consiga transformar as suas ideias em estética, não é nem nunca poderá ser um ser teórico nessa matéria. Será um moralista, com muitos discípulos e lackaios (por exemplo o João Barrento), mas faltará sempre o experere, o experimentar, o atravessar o perigo de cortar com a rede simbólica que o formulou Homem-como-ser-que-merece, em prol do Homem-como-ser-que-deve.

Clara, ver mal um espectáculo, é ver um espectáculo, sim, mas é ver MAL um espectáculo. Aquele adjectivo não se pode deitar fora. Ele está lá.
E ver mal um espectáculo significa que a consciência de si e o investimento feito nas coisas, estão mal (não existem ou são debole). Logo, All's wrong that Ends wrong.
Dizia também a minha avó: Cada qual tem o que merece. E eu digo: E eu, que tenho de viver no mundo desses cada quais?